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Imagine que um poder absoluto ou um texto sagrado
declarem que quem roubar ou assaltar será enforcado (ou terá
a mão cortada). Nesse caso, puxar a corda, afiar a faca ou
assistir à execução seria simples, pois a responsabilidade moral
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do veredicto não estaria conosco. Nas sociedades tradicionais,
em que a punição é decidida por uma autoridade superior a
todos, as execuções podem ser públicas: a coletividade festeja
o soberano que se encarregou da justiça — que alívio!
A coisa é mais complicada na modernidade, em que
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os cidadãos comuns (como você e eu) são a fonte de toda
autoridade jurídica e moral. Hoje, no mundo ocidental,
se alguém é executado, o braço que mata é, em última
instância, o dos cidadãos — o nosso. Mesmo que o condenado
seja indiscutivelmente culpado, pairam mil dúvidas. Matar um
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condenado à morte não é mais uma festa, pois é difícil celebrar
o triunfo de uma moral tecida de perplexidade. As execuções
acontecem em lugares fechados, diante de poucas testemunhas:
há uma espécie de vergonha. Essa discrição é apresentada
como um progresso: os povos civilizados não executam seus
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condenados nas praças. Mas o dito progresso é, de fato, um
corolário da incerteza ética de nossa cultura.
Reprimimos em nós desejos e fantasias que nos
parecem ameaçar o convívio social. Logo, frustrados, zelamos
pela prisão daqueles que não se impõem as mesmas renúncias.
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Mas a coisa muda quando a pena é radical, pois há o risco de
que a morte do culpado sirva para nos dar a ilusão de liquidar,
com ela, o que há de pior em nós. Nesse caso, a execução do
condenado é usada para limpar nossa alma. Em geral, a justiça
sumária é isto: uma pressa em suprimir desejos inconfessáveis
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de quem faz justiça. Como psicanalista, apenas gostaria que a
morte dos culpados não servisse para exorcizar nossas piores
fantasias — isso, sobretudo, porque o exorcismo seria ilusório.
Contudo é possível que haja crimes hediondos nos quais não
reconhecemos nada de nossos desejos reprimidos.
Contardo Calligaris. Terra de ninguém – 101 crônicas.
São Paulo: Publifolha, 2004, p. 94-6 (com adaptações).