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Fundada por Ptolomeu Filadelfo, no início do século
III a.C., a biblioteca de Alexandria representa uma epígrafe
perfeita para a discussão sobre a materialidade da
comunicação. As escavações para a localização da biblioteca,
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sem dúvida um dos maiores tesouros da Antiguidade,
atraíram inúmeras gerações de arqueólogos. Inutilmente.
Tratava-se então de uma biblioteca imaginária, cujos livros
talvez nunca tivessem existido? Persistiam, contudo,
numerosas fontes clássicas que descreviam o lugar em que se
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encontravam centenas de milhares de rolos. E eis a solução
do enigma. O acervo da biblioteca de Alexandria era
composto por rolos e não por livros — pressuposição por
certo ingênua, ou seja, atribuição anacrônica de nossa
materialidade para épocas diversas. Em vez de um conjunto
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de salas com estantes dispostas paralelamente e enfeixadas
em um edifício próprio, a biblioteca de Alexandria consistia
em uma série infinita de estantes escavadas nas paredes da
tumba de Ramsés. Ora, mas não era essa a melhor forma de
colecionar rolos, preservando-os contra as intempéries? Os
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arqueólogos que passaram anos sem encontrar a biblioteca de
Alexandria sempre a tiveram diante dos olhos, mesmo ao
alcance das mãos. No entanto, jamais poderiam localizá-la,
já que não levaram em consideração a materialidade dos
meios de comunicação dominante na época: eles, na verdade,
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procuravam uma biblioteca estruturada para colecionar livros
e não rolos. Quantas bibliotecas de Alexandria permanecem
ignoradas devido à negligência com a materialidade dos
meios de comunicação?
O conceito de materialidade da comunicação supõe
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a reconstrução da materialidade específica mediante a qual os
valores de uma cultura são, de um lado, produzidos e, de
outro, transmitidos. Tal materialidade envolve tanto o meio
de comunicação quanto as instituições responsáveis pela
reprodução da cultura e, em um sentido amplo, inclui as
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relações entre meio de comunicação, instituições e hábitos
mentais de uma época determinada. Vejamos: para o
entendimento de uma forma particular de comunicação —
por exemplo, o teatro na Grécia clássica ou na Inglaterra
elizabetana; o romance nos séculos XVIII e XIX; o cinema
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e a televisão no século XX; o computador em nossos dias —,
o estudioso deve reconstruir tanto as condições históricas
quanto a materialidade do meio de comunicação. Assim, no
teatro, a voz e o corpo do ator constituem uma materialidade
muito diferente da que será criada pelo advento e difusão da
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imprensa, pois os tipos impressos tendem, ao contrário, a
excluir o corpo do circuito comunicativo. Já os meios
audiovisuais e informáticos promovem um certo retorno do
corpo, mas sob o signo da virtualidade. Compreender,
portanto, como tais materialidades influem na elaboração do
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ato comunicativo é fundamental para se entender como
chegam a interferir na própria ordenação da sociedade.
João C. de C. Rocha. A matéria da materialidade: como
localizar a biblioteca de Alexandria? In: João C. de C. Rocha
(Org.). Interseções: a materialidade da comunicação. Rio de
Janeiro: Imago; EDUERJ, 1998, p. 12, 14-15 (com adaptações).