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De repente, escolhemos a vida de alguém. Era essa que a gente queria. Naquela casa grande e branca, na rua
quieta, na cidade pequena. Sim, estamos trocando tudo. Era ela que a gente queria ser, aquela serenidade atrás dos
olhos claros, aquela bondade que se estende aos bichos e às coisas, tão simplesmente. E aquela mansa alegria de viver,
aquele risonho voto de confiança na vida, aquela promissória em branco contra o futuro, descontada cada dia,
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miudamente, a plantar flores, a brunir a casa a aconchegar os bichos.
Era naquele porto que a gente gostaria de colher as velas, trocar a ansiedade, a inquietação, a angústia latente e
sem remédio, o medo múltiplo e cósmico, todas as interrogações, por aquela paz. Acordar de manhã, depois de dormir
de noite, achando que vale a pena, que paga, que compensa botar dois pés entusiasmados no chão. Abrir as bandeiras
das venezianas para que o sol entre, com gesto de quem abre o coração. Qual é o hormônio, e destilado por que
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glândula, que dá a uma mulher o gosto de engomar, tão alvamente, a sua toalha bordada para a bandeja do café? Há
uma batalha bem ganha, cotidianamente renovada, contra o pó e a traça e a ferrugem, que tudo consomem. Dentro
dos muros da sua cidadela, as flores viçam, a poeira foge, nada vence o alvo imaculado das cortinas, os cães vadios
acham lar e dono. E é esse um modo singelo mais difícil de ter fé. Cada bibelô tem uma história, diante de cada retrato
há um vaso de flor, para cada bicho há um gesto de carinho.
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“Mulher virtuosa, quem a achará? Porque o seu valor excede ao de muitos rubis” – cansei eu de ouvir, na escola
dominical e olho em torno a indagar quantos e que orientais rubis pagarão aquele miúdo, enternecido carinho, que pôs
flores nos vasos e cera no chão e transparência nos vidros e ouro líquido no chá. Oh, a perdida paz fazendeira deste chá
no meio da tarde, que as mulheres do meu tempo já não sabem o que seja, misturado a este morno cheiro de bolo e
torradas que vem da cozinha! Somos uma geração que come de pé, que trocou os doces ritos que cercavam o nobre ato
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de alimentar‐se, por uma apressada ingestão de calorias. Já não comemos, abastecemo‐nos como um veículo, como um
automóvel encostado à sua bomba. Trocamos as velhas salas de jantar por mesas de abas, que se improvisam, às
pressas, de um consolo exíguo encostado a uma parede. E o que sabe de um lar uma criança que não foi chamada, na
doçura da tarde, do fundo de um quintal, para interromper as correrias, lavar mal‐e‐mal as mãos e vir sentar‐se à mesa
posta para o lanche, com mansas senhoras gordas que vieram visitar a mamãe? É a hora dos quitutes, das ingênuas
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vaidades doceiras, da exibição das velhas receitas, copiadas em letra bonita de um caderno ornado de cromos.
Somos uma geração que perdeu o privilégio de não fazer nada, aquele doce não‐fazer‐nada que é a mansa hora do
repouso, o embalo da rede na frescura de uma varanda, a quietude ensolarada de um pomar em que o sono da tarde
nos pegou de repente, a hora de armar brinquedos para as crianças, das visitas que chegam sem se fazer anunciar, pois
na certa estaremos em casa para uma conversa despreocupada e sem objetivo. Somos uma geração de mulheres que
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saem demais de casa, para não se saber onde, fazendo fila para comprar, tomar condução ou assistir a um cinema.
Perdemos o abençoado tempo de perder tempo, de não fazer nada, a única hora em que a gente se sente viver. O mais
é canseira e aflição de espírito.
E foi tudo isso que reencontrei, de repente, na casa grande e branca da rua quieta.
(LESSA, Elsie. In: SANTOS, Joaquim Ferreira dos (Org). “As cem melhores crônicas brasileiras”. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 157‐158.)