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A Norma (1831) é claramente uma ópera que
encena, numa suposta rebelião gaulesa contra a tutela
romana na Antiguidade, a desejada libertação dos
italianos em face das potências estrangeiras − no caso,
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certamente a Áustria − que lhes vedam a independência
e a unidade nacional. Como é de praxe em boa parte
das óperas italianas do século XIX, ao posicionamento
progressista nas grandes questões sociais ou nacionais
se opõe um lastro, geralmente ocultado, que é de
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natureza mais propriamente pessoal, e serve de enorme
peso − inconsciente, posto que até então desconhecido −
contra aquela tomada de partido em favor [...] do “bem”
ou, pelo menos, da justiça e do progresso. Esse modelo
aparece, para citarmos apenas algumas óperas, nas
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Vespri siciliani e no Trovatore de Verdi; poder-se-ia
argumentar que a Traviata procede do mesmo modo.
Assim, um recorte se delineia inicialmente, a opor as
causas progressistas (a pátria livre, seja ela a Gália, a
Sicília ou qualquer outra; a defesa dos pobres; a união
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de quem se ama) ao que existe de mais retrógrado;
porém, a dramaticidade não procederá do conflito, num
mesmo nível, entre progressistas e reacionários, mas da
irrupção, no âmago mesmo da causa revolucionária
avançada, de um elemento pessoal marcado pelo
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acumpliciamento secreto, arcaico e culpável com o
inimigo. Dessa forma, o herói libertador dos sicilianos
nas Vespri é na verdade filho ilegítimo do governador
francês, o trovador, na ópera homônima, é o irmão
perdido de seu próprio perseguidor − e aqui, na Norma, a
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sacerdotiza suprema dos gauleses é amante do chefe
romano. É isso o que dilacera a alma, tanto do ator-
cantor como do expectador-ouvinte, e confere a essas
óperas seu caráter trágico.
(RIBEIRO, Renato Janine. Iracema ou a fundação do Brasil.
In FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia
brasileira em perspectiva. 5.ed., São Paulo: Contexto,
2003, p. 406)