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Para que servem as ficções?
Cresci numa família em que ler romances e assistir a
filmes, ou seja, mergulhar em ficções, não era considerado uma
perda de tempo. Podia atrasar os deveres ou sacrificar o sono
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para acabar um capítulo, e não era preciso me trancar no
banheiro nem ler à luz de uma lanterna. Meus pais, eventual-
mente, pediam que organizasse melhor meu horário, mas dei-
xavam claro que meu interesse pelas ficções era uma parte
crucial (e aprovada) da minha “formação”. Eles sequer exigiam
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que as ditas ficções fossem edificantes ou tivessem um valor
cultural estabelecido. Um policial e um Dostoiévski eram tra-
tados com a mesma deferência. Quando foi a minha vez de ser
pai, agi da mesma forma. Por quê?
Existe a idéia (comum) segundo a qual a ficção é uma
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“escola de vida”: ela nos apresenta a diversidade do mundo e
constitui um repertório do possível. Alguém dirá: o mesmo não
aconteceria com uma série de bons documentários ou ensaios
etnográficos? Certo, documentários e ensaios ampliam nossos
horizontes. Mas a ficção opera uma mágica suplementar.
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Tome, por exemplo, “O Caçador de Pipas”, de Khaled
Hosseini. A leitura nos faz conhecer a particularidade do Afega-
nistão, mas o que torna o romance irresistível é a história sin-
gular de Amir, o protagonista. Amir, afastado de nós pela parti-
cularidade de seu grupo, revela-se igual a nós pela singula-
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ridade de sua experiência. A vida dos afegãos pode ser objeto
de um documentário, que, sem dúvida, será instrutivo. Mas a
história fictícia “daquele” afegão o torna meu semelhante e meu
irmão.
Esta é a mágica da ficção: no meio das diferenças
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particulares entre grupos, ela inventa experiências singulares
que revelam a humanidade que é comum a todos, protagonistas
e leitores. A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a
descobrir o que há de humano em mim.
Enfim, se perpetuei e transmiti o respeito de meus pais
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pelas ficções é porque elas me parecem ser a maior e melhor
fonte não de nossas normas morais, mas de nosso pensamento
moral.
(Contardo Calligaris, Folha de S. Paulo, 18/01/2007)