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A pergunta que mais me fazem quando dou palestras, ou mesmo quando me mandam emails, é se acredito em Deus.
Quando respondo que não acredito, vejo um ar de confusão, às vezes até de medo, no rosto da pessoa: “Mas como o senhor
consegue dormir à noite?”.
Não há nada de estranho em perguntar a um cientista sobre suas crenças. Afinal, ao seguirmos a velha rixa entre a ciência e
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a religião, vemos que, à medida em que a ciência foi progredindo, foi também ameaçando a presença de Deus no mundo. Mesmo
o grande Newton via um papel essencial para Deus na natureza: Ele interferiria para manter o cosmo em xeque, de modo que os
planetas não desenvolvessem instabilidades e acabassem todos amontoados no centro, junto ao Sol. Porém, logo ficou claro que
esse Deus era desnecessário, que a natureza podia cuidar de si mesma. O Deus que interferia no mundo transformou-se no Deus
criador: após criar o mundo, deixou-o à mercê de suas leis. Mas nesse caso, o que seria Deus? Se essa tendência continuasse, a
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ciência tornaria Deus desnecessário?
Foi nessa tensão que surgiu a crença de que a agenda da Ciência é roubar Deus das pessoas. Um número espantoso de
pessoas acha mesmo que esse é o objetivo dos cientistas, acabar com a crença no mundo. Os livros de Richard Dawkins e
outros cientistas ateus militantes, que acusam os que creem de viverem num estado de delírio permanente, não ajudam em
nada a situação. Mas será isso mesmo o que a ciência pretende? Será que esses fundamentalistas ateus falam por todos os
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cientistas?
De modo algum. Eu conheço muitos cientistas religiosos que não veem qualquer conflito entre a sua ciência e sua crença.
Para eles, quanto mais entendem o Universo, mas admiram a obra do seu Deus. (São vários.) Mesmo que essa não seja a minha
posição, respeito os que creem. A ciência não tem uma agenda contra a religião. Ela se propõe simplesmente a interpretar a
natureza, expandindo nosso conhecimento do mundo natural. Sua missão é aliviar o sofrimento humano, aumentando o conforto
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das pessoas, desenvolvendo técnicas de produção avançadas, ajudando no combate às doenças. O “resto”, a bagagem humana
que acompanha e inspira o conhecimento (e que às vezes o atravanca), não vem da ciência como corpo de saber, mas dos
homens e das mulheres que se dedicam ao seu estudo.
É óbvio que, como já afirmava Einstein, crer num Deus que interfere nos afazeres humanos é incompatível com a visão da
ciência de que a natureza procede de acordo com leis que, bem ou mal, podemos compreender. O problema se torna sério
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quando a religião se propõe a explicar fenômenos naturais. Dizer que o mundo tem menos de 7.000 anos ou que somos
descendentes diretos de Adão e Eva, que por sua vez, foram criados por Deus, é equivalente a viver no século 16 ou antes disso.
A insistência em negar os avanços e as descobertas da ciência é, francamente, inaceitável. Por exemplo, um número enorme de
pessoas se recusa a aceitar que o homem pousou na Lua. Quando ouço isso, fico horrorizado. Esse feito, como tantos outros,
deveria ser celebrado como um dos marcos da civilização, motivo de orgulho para todos nós.
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Podemos dizer que existem dois tipos de pessoa: os naturalistas e os sobrenaturalistas. Os sobrenaturalistas veem forças
ocultas por trás dos afazeres dos homens, vivendo escravizados por medos apocalípticos e crenças inexplicáveis. Os naturalistas
aceitam que nunca teremos todas as respostas. Mas, em vez de temer o desconhecido, abraçam essa ignorância como um
desafio e não uma prisão. É por isso que eu durmo bem à noite.
(Marcelo Gleiser, Folha de S. Paulo, 28 mar. 2010, p. M-4.)